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Por Humberto Ramos

Quais semelhanças poderíamos ressaltar entre o Brasil e a Colômbia para além das belezas naturais, das belas praias e da gente faceira, amigável e hospitaleira? Talvez a relação dos seus governos com grupos paramilitares e milicianos e a posição de subserviência aos Estados Unidos.  Mas, infelizmente, as similitudes não param aí: há também a belicosidade estatal que constantemente volta a mira de suas armas contra seu próprio povo. Na semana em que as organizações de defesa dos direitos humanos observavam a violenta repressão das autoridades colombianas às manifestações populares decorrentes de uma greve ocorrida em 28 de abril, uma das ações policiais mais violentas da nossa história voltaria nossos olhares para o Rio de Janeiro.

Assim como na Colômbia, apenas em um outro contexto, nesta ocasião, o Estado, por meio de seu braço armado, lançou mão de sua prerrogativa de monopólio da violência, conforme pacífico nas democracias ocidentais. Em uma fatídica operação da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, 28 pessoas foram mortas. De acordo com as autoridades policiais, o Grupo de Elite da Polícia Civil incursionou na favela do Jacarezinho com vista a executar mandados de prisão contra traficantes que estariam aliciando crianças e adolescentes como soldados do tráfico. De acordo com os relatos da própria polícia, estes foram recebidos a tiros pelos traficantes, vindo a ser atingido um dos policiais – que faleceu.

Após o confronto inicial, o que se sucedeu foi trágico. A operação, sugestivamente denominada “Exceptions” (Exceções, em português), descambou para uma caçada sangrenta que não poupou residências particulares e nem sequer a presença de crianças (como de costume nas incursões policiais nas favelas cariocas). Pululam nas redes sociais vídeos de moradores lavando suas residências tentando despregar o sangue dos suspeitos mortos pelos policiais. Um dos relatos, talvez o mais emocionante, um pai conta sua aflição quando um dos suspeitos, segundo ele desarmado, adentrou sua residência, onde também estava sua filha de nove anos, e os gritos dos policiais ordenando-os que saíssem – o suspeito foi morto no quarto da sua filha.

Especialistas, a partir dos relatos e do contexto em que se deram as mortes, falam em execução, chacina. As autoridades policiais contestam alegando fidelidade aos protocolos da corporação. Investigações estão em curso, mas não precisamos necessariamente esperar as conclusões finais para saber que, nas favelas, o Estado, além de não se fazer presente, quando se faz é por meio do seu braço forte e “vingador”! A justiça está bem distante das periferias brasileiras. O Poder Judiciário, este tem se constituído como uma prerrogativa daqueles que têm dinheiro. O que foge disso é resultado do empenho de coletivos de advogados populares, advogados que atuam em instituições de defesa dos direitos humanos ou de membros da Defensoria Pública.

Uma das cenas mais emblemáticas neste episódio foi transmitida em uma das reportagens de uma emissora da grande mídia. Um homem e uma mulher jogando baldes de água nas escadas de concreto de um templo da Igreja Deus é Amor. Chocante! No frontal do templo o arco-íris, que, de acordo com a tradição bíblica, é sinal do pacto de Deus com a humanidade, as palavras Deus e amor juntas, sinalizando alguma esperança, algum alívio e acolhimento para aquela gente sofrida mergulhada na vulnerabilidade social (expressão bonita que a gente convencionou dar à pobreza). No chão, entretanto, sangue, muito sangue impregnado no concreto. Além do sangue, o certamente o estresse pós-traumático decorrente do que acabaram de assistir e também o medo fundado na certeza de que tudo pode voltar a se repetir e só Deus sabe quando! Afinal, é o Rio de Janeiro.

É preciso voltar nosso olhar à Colômbia. Mas como?… O Estado que mata lá é o mesmo Estado que mata aqui. Existe, evidentemente, muitas peculiaridades. Não obstante, assistimos cotidianamente as mazelas decorrentes de pactos espúrios pelos quais o Estado e crime negociam a gestão da violência. Ministrando-a conforme melhor lhes apraz. A insígnia da guerra às drogas deixa um rastro fúnebre lá como deixa aqui. E assim como em terras tupiniquins, lá também há os profetas do caos. Gente que parece ter trocado a crença de que “Deus é amor” por “Deus é vingança”.

No Brasil, um país cheio de contradições, Deus está nos discursos que enaltecem a violência e a guerra, está na boca de pessoas que proferem “bandido bom é bandido morto”. Deus está também na boca e no coração de gente que sofre com a violência, de gente que, tendo passado pela experiência do tráfico, apregoa libertação das amarras do crime e anuncia que “bandido bom é bandido lavado e remido pelo sangue de Jesus”. Hoje, nas favelas do Rio de Janeiro, não apenas aqueles pregadores egressos do crime apregoam Jesus, a complexidade que reina nestas bandas só aumenta. Já há grupos de traficantes que reivindicam o pertencimento evangélico, depredam templos de cultos de matriz africana e, para a surpresa de muitos, até rebatizam os territórios ocupados tendo como referência signos utilizados pela fé evangélica, como é o caso do conjunto de favelas nomeado por um traficante como Complexo de Israel.

Aqui e na Colômbia, seja na repressão cruel e sanguinária à manifestantes que exercem o direito fundamental de ir às ruas, seja na operação “Exceptions” realizada no Jacarezinho, exceção não é uma palavra que podemos dizer descuidadamente, inocentemente. Exceção é o estado constante de coisas. É parte de uma sociabilidade perversa velada por uma institucionalidade de fachada. As instituições estão funcionando plenamente, é o que dizem! E aquela minoria que se concentra no topo da pirâmide talvez estranhe a atribuição de gravidade à expressão exceção, mas aqueles que sobrevivem na base, ainda que não consigam elaborar, sabem na prática que o Estado Democrático de Direito vale mais para alguns do que para outros.

 

Crédito da foto: unsplash.com

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